Felipe Coelho – Timing

 

Como todos sabemos, o jazz nasceu nos EUA e veio a tornar-se uma linguagem mundial, uma referência de vocabulário musical que instrumentistas de todos os continentes vem adotando em seu modo de improvisar há décadas. Ao tornar-se universal, mesclou-se com outros sotaques musicais, tendo como seus melhores exemplos na música Brasileira (em minha opinião) os guitarristas Lula Galvão e Hélio Delmiro.

Resolvi então apresentar uma aula com abordagem filosófica, com intuito de chamar a atenção a um dos atributos mais importantes deste vocabulário, que percebo ser uma das lacunas mais comuns quando esta linguagem é aprendida por nós guitarristas brasileiros. Trata-se de um termo vindo do inglês cuja tradução ao nosso idioma não é bem definida, e caso seja, posso ao menos afirmar que não é tão usada quanto deveria nas salas de aula nem em nossas consciências como guitarristas improvisadores: “timing”.

A tradução para português do termo na ‘Wikipedia’ apresenta-se como “saber escolher o melhor momento”. Eu gosto de definir apenas como ‘consciência rítmica’ e é exatamente sobre isso que quero falar. Primeiramente sob uma perspectiva básica, porém já crucial, timing refere-se a quão claramente distribuímos as notas ritmicamente em nosso discurso musical.

É necessário aqui, colocar luz sobre a importância do ritmo no fazer musical quando comparado com as outras esferas da música: melodia, harmonia e timbre. Perdoem-me os que discordarem, mas o ritmo vem em primeiro lugar. É ele que incita o groove, o transe, e é responsável por toda a paudurecência que há de haver na música. Sem ritmo, não há fraseado. Sem ritmo as pessoas não sentirão o corpo mexer, e não terão a mesma experiência de conexão mental e corporal com a música. Portanto chego ao meu primeiro ponto da aula:

Lembre-se de que tudo o que você for tocar, tudo, deve ter total clareza rítmica.

Já ouvi o senhor Pat Metheny discursar uma aula inteira sobre apenas isto. Quando tocamos, devemos pensar que, se aquilo fosse transcrito, não deixaria nenhuma dúvida ao ‘transcritor’ sobre nossas intenções rítmicas a todos os momentos, nota por nota. Há apenas dois casos em que podemos quebrar esta regra: 1.Quando o compositor escreve ‘rubato’ (andamento livre); ou 2. Quando temos consciência de que estamos quebrando a regra e assumimos a responsabilidade de decidir por abandonar o ritmo por julgarmos ser este o caminho mais musical. Porém esta é uma decisão perigosa, quase como aquele botão vermelho do “eject” ou “self-destruct” mas que em raros casos pode ser a decisão mais musical.

Agora, dando um passo além da perspectiva básica do termo ‘timing’ e adentrando seu significado e utilização em um mergulho mais profundo, entraremos no universo do ‘swing’. Não uso aqui o termo ‘swing’ referindo-me ao ritmo americano, mas sim, à habilidade inerente ao bom timing de criar ‘balanço’ no discorrer melódico, seja na linguagem erudita, brasileira, ou o ‘swing’ americano, etc…

Aqui, a definição ‘saber escolher o melhor momento’ cai ainda melhor se entendermos como ‘micro-momento’, (microsegundos em relação ao metrônomo). Na música brasileira por exemplo, (tomando-se o groove do samba de forma resumida) percebemos que as semicolcheias do toque do pandeiro dispõem-se de forma que a primeira e a quarta semicolcheias são acentuadas e aparentemente mais longas, enquanto que a segunda e terceira semicolcheias são mais curtas, como “ghost notes” em staccato. Já no caso do swing americano, acentua-se a segunda e quarta semi colcheia (os “up beats”), e coloca-se todas as notas levemente “atrasadas” em relação ao metrônomo, como se fossem notas preguiçosas, criando um feeling ‘relax’ independente da velocidade do andamento – (observe ilustração, igualando duas colcheias a uma ligadura de tercina para sensação de atraso). São essas as características que o ‘discursor’ deve priorizar a todo instante, e isso me leva ao segundo ponto da aula:

Além de clareza rítmica, dominar o micro-timing de cada ataque, colando as subdivisões junto à percussão, incorporando-se totalmente ao groove,


assim adicionando à música além de estar tornando mais leve o trabalho dos outros músicos. Já ouvi muitas vezes bateristas experientes dizerem que, quando tocam com músicos com ‘timing’ fraco, se sentem mais cansados no final das gigs, pois sentem como se tivessem que carregar um peso. Já os músicos com timing bem desenvolvido, ajudam o baterista no trabalho de esclarecimento do groove, remando à favor e não contra a correnteza.

O problema que temos como guitarristas no Brasil, é que pouquíssimos de nós cresceu com mentores musicais falando sobre ‘timing’ ou sobre incitar uma atmosfera dançante através de linhas melódicas. Esses termos, no berço do jazz, são inseridos na cultura, como o próprio termo ‘timing’, ou frases que já vi educares dizerem aos seus alunos como: ‘make’em dance’ (faça-os dançar), ou ‘swing it hard’. Maioria de nós guitarristas (inclusive eu) teve sua base no metal, onde a velocidade foi sempre um atributo importante. Isso pode ser perigoso, pois trazemos certos vícios, sendo um deles, estudar licks rápidos sem levar o ritmo em consideração. Então temos que ter cuidado quando improvisamos para não deixar a emoção do momento nos fazer escorregar em relação ao timing, (que é na realidade não apenas um atributo do jazz, mas um fundamento universal da música), consequentemente entrando em um frenesi de notas completamente ‘bastardeadas’ de seus ritmos, o que já vi acontecer muito, caso contrário não faria essa aula toda apenas sobre isso. Terceiro ponto da aula:

Se você imagina uma idéia musical e tenta executá-la no seu improviso, porém percebe que deu um passo maior do que a perna e não conseguiu alinhar com clareza o ritmo das notas, pare imediatamente.

Olhar para o céu com cara de emoção pode enganar algumas pessoas mas não todas. Continuar tocando com o ritmo perdido dá a mesma sensação aos seus ouvintes de estarem andando num trem destrilhado. Em minha opinião, mesmo quando eu consigo alinhar o ritmo de uma idéia difícil, se sinto que o groove (micro-timing) está se perdendo já é suficiente para eu decidir abandoná-la. Se ela deixa de ter um som relaxado e passa a ter um som agoniado, já não quero servir aquilo aos ouvintes. Por fim o ponto é: Desenvolva auto percepção rítmica daquilo que você toca, e junto a esta percepção desenvolva um freio de mão para quando necessário. Experimentação é sim importante na música, mas devemos preferir filtrar o que tocamos para dar aos ouvintes só as idéias que se mantém alinhadas ao groove. É o mínimo que eles merecem. Quanto àquilo que fere o groove, guardemos para experimentar em casa. Se você conseguir se controlar a ponto de apenas deixar-se tocar o que está alinhado ao groove, sempre podando fora as idéias que ousam desalinhar-se, você nunca vai errar e seus ouvintes nunca saberão onde é seu limite técnico. Acabei de dar a fórmula para nunca mais errar. Não que eu a domine, mas aí ela está.

Tivemos a aparição na cena musical de um cara que aos meus olhos foi um grande libertador do metal, um cara que provou que o metal e os licks mega rápidos podem ser sim muito musicais. O guitarrista Guthrie Govan na minha opinião tem sido um dos melhores da história na fusão jazz e metal, tocando licks bastante rápidos, porém mantendo uma musicalidade absoluta. Como ele fez isso? Aí vem o termo novamente: “timing”. Perceba que tudo o que esse cara se propõe a tocar é cravado, o que resulta em pura musicalidade. A sugestão para desenvolver-se nessa onda é pegar todos os licks que você sabe, e executá-los com total clareza rítmica. Para os licks sem ritmo, coloque-os nos trilhos sugerindo alguma subdivisão. Depois de dominar a execução de uma frase, experimente executá-la começando na segunda semicolcheia, depois começando pela terceira, depois quarta, e depois experimente em sextinas, e depois se você for o Nelson Veras, experimente em septinas. Assim observará notas diferentes sendo acentuadas em cada variação e isso multiplicará (muito) sua rede de conexões neurais, criando mais saídas rápidas para as infinitas situações rítmicas e melódicas na prática do improviso. Exercitar licks sem pensar em seu ritmo é apenas físico, não mental, não musical, e pode até ser perigoso, pois quando se toca música de verdade precisa-se de ritmo, exercitar velocidade na ausência de ritmo é dar combustível a um trem descarrilado. Musicalmente pouco lhe servirá.

Exercício: escolha uma música que você gosta. Faça um improviso sem base, só você, tente através de suas notas deixar claro não apenas o andamento e a harmonia, mas também a linguagem rítmica ou groove da música que está tocando.

Fun Fact = para os que gostam de tocar rápido, (eu também gosto, com moderação) talvez o mais eficaz exercício para que ainda se mantenha um bom conteúdo musical e rítmico é simplesmente…

…adotar a consciência do timing como prioridade em tudo que se toca,

mesmo quando se toca lentamente, de hoje em diante, para sempre. Deixando sempre ligado seu botão de ‘timing’, toda vez que você pegar o instrumento estará fortificando suas conexões neurais e seus reflexos, assim estando mais bem preparado para quando o andamento subir ou quando você quiser ‘dobrar’ a subdivisão da sua frase ainda mantendo o groove e não abandonando o ritmo, jamais.





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